Mercenários dos EUA e 400 fuzis: o que está por trás da mais recente tentativa de golpe na Venezuela
A Venezuela anunciou no último final de semana ter desmantelado uma tentativa de golpe de Estado no país. O ministro do Interior, Diosdado Cabello, foi à imprensa para apresentar a operação que apreendeu 400 fuzis e prendeu 6 pessoas envolvidas no que o governo chamou de um “plano de desestabilização” que tinha como objetivo matar o presidente Nicolás Maduro e a vice Delcy Rodríguez.
Se essa não é a primeira vez que os venezuelanos denunciam uma tentativa de golpe, a nova trama envolve um militar estadunidense da ativa e traz atores diferentes em relação às últimas.
O primeiro desses atores é o Centro Nacional de Inteligência espanhol (CNI). Segundo o governo venezuelano, a agência espanhola tentou recrutar pessoas em território venezuelano para promover ações internas e usou mercenários franceses para planejar a tomada do Palácio Miraflores –sede do governo venezuelano– e atacar áreas estratégicas, como o aeroporto Internacional de Maiquetia.
As ações seriam chefiadas por Wilbert Joseph Castañeda Gómez, militar que atua na Marinha dos Estados Unidos. Segundo Cabello, ele esteve envolvido em missões no Afeganistão, Iraque e Colômbia. Ele foi preso em 1º de setembro na cidade de Colonia Tovar, uma região montanhosa a 75 km de Caracas. Gómez teria entrado no país pela Colômbia com ajuda do grupo Trem de Aragua, organização conhecida pela atuação no tráfico de drogas. Ele teria mantido contato com uma série de opositores e grupos criminosos para articular o golpe.
Um dos contatos seria El Flaco, venezuelano que atua nos Estados Unidos organizando ataques contra a Venezuela. Diosdado Cabello apresentou trocas de mensagens que mostram como os dois articularam os atos violentos que foram realizados nos dias seguintes às eleições que deram a vitória a Nicolás Maduro.
Em seu programa de televisão semanal Con Maduro +, o presidente mostrou imagens de Castañeda em uma manifestação a favor da oposição nos Estados Unidos. Cabello afirmou também que foram presos outros dois estadunidenses especialistas em ataques hackers e dois espanhóis. De acordo com o jornal As, familiares afirmaram que os espanhóis foram passar férias na Colômbia e na Venezuela.
O ministro do Interior afirmou no pronunciamento que os dois nutriram uma relação com Carlos Chancellor, ex-prefeito de Sifontes, e o dirigente opositor Américo De Grazia para assassinar a prefeita de Piar, Yulibeth "Tata" García.
Além de Espanha e Estados Unidos, um mercenário da República Tcheca também estaria envolvido nesses planos. Jan Darmovrzal e os mercenários franceses estariam vinculados ao grupo Comando AZ. De acordo com o governo da Venezuela, um dos pontos de atuação seria o Equador, já que a Colômbia se tornou território de difícil acesso para grupos criminosos desde a posse de Gustavo Petro.
Participação dos EUA
A principal prova do envolvimento estadunidense na tentativa de golpe de 2024 são os fuzis apreendidos. Diosdado Cabello apresentou todos à imprensa venezuelana no domingo. Sobre uma mesa, o ministro colocou a mostra munições e armamentos que tinham uma inscrição afirmando que as armas são de uso exclusivo dos Estados Unidos e não poderiam ser negociados.
Para o cientista político Eder Peña, esse tipo de operação exige um preparo de longo tempo e, por isso, pode não ter ligação direta com as eleições presidenciais de julho, mas sim com um plano de longo prazo.
“Essa quantidade de armamentos não se prepara em pouco tempo. Há uma articulação externa e até interna para isso. No último domingo o presidente Joe Biden falou sobre uma ineficiência dos governos venezuelano e boliviano no combate ao tráfico de drogas, em uma espécie de sinalização para justificar essas ações”, afirmou ao Brasil de Fato.
Segundo Peña, a atuação histórica dos democratas estaduidenses na Venezuela é realizar “operações encobertas”. Ainda de acordo com ele, o vazio de poder promovido pelas eleições dos EUA também deixa o cenário incerto sobre a coordenação desses ataques.
“O papel do Departamento de Estado é claro, muito ao estilo dos democratas. Que não é de afronta, mas de operações encobertas. Não se sabe quem está mandando em Washington, as agências de inteligência tomaram o controle do que fazer contra a Venezuela, o que é perigoso, porque eles são capazes de entrar no país de forma muito mais profunda”, afirmou.
Segundo o analista político do grupo venezuelano Missão Verdade, Diego Sequera, é difícil que isso tenha sido coordenado pela alta cúpula estadunidense, mas, para ele, é possível que pessoas ligadas à administração de Joe Biden soubessem desse tipo de planos organizados.
Sequera afirma, no entanto, que há uma ligação com setores empresariais que têm interesses na Venezuela.
“Isso dificilmente vai tocar a Casa Branca ou pessoas ligadas ao Executivo, mas pelo que foi revelado, é possível que tenha pessoas de alto nível inteiradas nessas operações encobertas. Parece um clássico da CIA pela forma que está organizado. Setores empresariais estão envolvidos nisso com certeza, por estarem diretamente ligados a interesses materiais aqui. Mas ainda falta saber mais detalhes, é preciso de mais informações”, disse.
Prisões como foco
Além de ter uma atuação nas ruas, o plano de ataque contra a Venezuela também envolvia o uso de prisões para desestabilizar o país. A ideia era levar uma parte dos armamentos para dentro dos presídios e instaurar uma série de rebeliões. As investigações estão ouvindo agora 14 líderes de grupos criminosos que já estão presos e estariam envolvidos nessa articulação.
Um deles é José Miguel Estrada, preso por tentar matar o presidente Nicolás Maduro em 2018. Ele teria coordenado por grupos de Whatsapp uma série de atos terroristas, mas usando organizações religiosas como fachada.
Um dos envolvidos neste plano também seria o ex-deputado Gilbert Caro. Ele está preso nos Estados Unidos por homicídio em um acidente de trânsito. Caro fazia parte do grupo Voluntad Popular, de Juan Guaidó.
Ainda no seu programa, Maduro disse que o plano começou a ser desenvolvido em 2023 e envolvia 8 prisões em todo o país, mas que foi sendo desmobilizado pela inteligência venezuelana em operações ao longo do ano passado.
Envolvimento dos EUA e Espanha
“A CIA está a liderar esta operação e isso não nos surpreende; no entanto, o Centro Nacional de Inteligência de Espanha manteve-se sempre discreto, sabendo que a CIA opera nesta área”. Foi assim que Cabello definiu a participação dos dois países na tentativa de golpe. Os dois países, no entanto, negaram qualquer envolvimento.
O Departamento de Estado dos EUA disse que “qualquer afirmação sobre a participação dos EUA numa conspiração para derrubar Maduro é categoricamente falsa” e, em nota, afirmou que os Estados Unidos apoiam uma “solução democrática para a crise política na Venezuela”.
Segundo a Agência EFE, o governo espanhol também negou qualquer envolvimento nos planos golpistas. De acordo com a agência de notícias espanhola, fontes ligadas ao Ministério de Negócios Estrangeiros afirmaram que “o governo confirmou que os detidos não fazem parte da CNI ou de qualquer outra organização estatal".
Espanha e Estados Unidos mantêm uma cooperação para atuações de segurança e inteligência em outros territórios. De acordo com documentos vazados pelo WikiLeaks em 2013, a Agência Nacional de Segurança dos EUA (NSA) estabelece esse tipo de trabalho conjunto em quatro níveis. A Espanha está em um segundo nível de cooperação com outros 17 países europeus, além de Coreia do Sul e Japão.
De acordo com os documentos, os países desse nível devem ser “aliados seguros e capazes de proteger a informação classificada pelos Estados Unidos”. O objetivo é que eles compartilhem informações e sigam uma orientação na atuação em computadores em rede.
Para Eder Peña, há também o objetivo de ocupar cada vez mais setores estratégicos da Venezuela, como as comunicações e o petróleo.
“Os investimentos da Espanha na Venezuela estão baseados na empresa de telefonia Movistar e a petroleira Repsol. Casualmente, EUA estão nessas duas linhas: controle da comunicação e das tecnologias e o controle dos combustíveis fósseis. Não teria nada de estranho que EUA queira ter o controle dessas frentes cada vez mais”, afirmou.
Outras operações
Desde sua primeira posse em 2013, Nicolás Maduro enfrenta uma série de planos e operações para derrubar o governo. Desde a oposição, até articulações externas, o presidente já lidou e denunciou uma série de ataques promovidos pela direita. O primeiro deles na gestão do chefe do executivo foi registrada em junho de 2013.
Naquele mês, nove pessoas foram presas na Venezuela. eles seriam integrantes do grupo paramilitar colombiano Los Rastrojos. A ideia era ocupar Caracas em um ataque que agruparia outros paramilitares no país. O plano foi descoberto pelo Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional (Sebin) e desmobilizado pelas forças de segurança.
Um dos primeiros planos denunciados por Maduro que teve a participação dos Estados Unidos foi o chamado “Golpe Azul”, ou “Operação Jericó”, que teria sido organizado por um grupo de militares venezuelanos da Aeronáutica com o governo dos EUA. A ideia era usar um avião para atacar o palácio Miraflores durante as comemorações do Dia da Juventude. O plano também foi interceptado pelo governo da Venezuela.
Um dos episódios mais importantes do governo Maduro foi a tentativa de golpe de Estado no país em 2020. A chamada Operação Gedeón tinha como objetivo derrubar o governo de Nicolás Maduro a partir de ataques em diferentes lugares do país. Ao todo, 29 pessoas foram condenadas por “traição a pátria, conspiração com governo estrangeiro, rebelião, associação, tráfico ilegal de armas de guerra, terrorismo e financiamento do terrorismo”.
Na ocasião, uma lancha com 10 homens armados com fuzis, metralhadoras e uma pistola tentou aportar na praia Macuto, costa do estado de La Guaira, cerca de 50 km da capital Caracas. Segundo o GPS da própria embarcação, a viagem começou na Colômbia. O plano envolvia também ataques por terra. As Forças Armadas Nacionais Bolivarianas (Fanb) conseguiram interceptar e desmobilizar a operação.
Outros planos também foram denunciados já em 2024. Em janeiro, o Ministério Público anunciou que foram desmobilizadas 5 tentativas de golpe de Estado durante 2023 que incluíam a morte do presidente, Nicolás Maduro, e do ministro da Defesa, Vladimir Padrino López. Na ocasião, foram realizadas 32 prisões de pessoas acusadas de conspiração.
Maduro também afirmou em março que ex-presidente da Colômbia Álvaro Uribe e o fundador do partido opositor venezuelano Vontade Popular, Leopoldo López, planejaram “ataques terroristas” contra a Venezuela. Segundo o mandatário, os planos estavam sendo articulados com paramilitares para serem realizados na fronteira com a Colômbia.
BdF