Chegaremos ao ponto de dizer que todo mundo é portador de pelo menos uma doença?

Por Nossa Hora
Domingo, 29 de Setembro de 2024 às 17:00
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O termo medicalização define o fenômeno em que um comportamento ou uma condição física ou mental passa a ser tratado como se fosse um problema médico, recebendo um rótulo de doença e opções de tratamento.

O centro da discussão quando se fala em medicalização é a força da indústria farmacêutica nesse processo que impulsiona a sociedade civil, profissionais de saúde, órgãos do governo e a mídia a retroalimentarem a cultura de que todo organismo vivo da espécie sapiens, a princípio, deve ter alguma doença ou precisa de algum remédio. Todos esses atores podem contribuir de alguma forma para esse fenômeno.

Nos EUA, a publicidade de medicações acontece de forma direta com os consumidores com inserções do tipo: “Se você está se sentindo desanimado, pode ser que este antidepressivo seja indicado no seu caso. Converse com seu médico sobre isso”. Calcula-se que cada dólar gasto em publicidade direta ao consumidor dê um retorno de mais de quatro dólares em vendas.

No Brasil, a Anvisa não permite essa abordagem direta e, por isso, o trabalho das indústrias farmacêuticas junto aos médicos deve ser ainda mais intenso para alcançar as metas de vendas, pois são eles que estão na linha de frente. A publicidade dirigida aos médicos inclui as visitas de representantes para oferecer amostras grátis dos últimos lançamentos, propaganda de seus produtos em periódicos destinados à classe médica e patrocínio de eventos científicos.

Grande parte dos médicos especialistas que fazem parte dos painéis que definem os critérios diagnósticos das doenças tem conflitos de interesse. Esses conflitos não são só financeiros, mas também intelectuais, pois o médico pesquisador tem a tendência de querer proteger seus “filhotes científicos”. Uma política exemplar tem o Instituto Nacional de Saúde nos EUA que não permite que o médico que tenha conflitos de interesse com a indústria farmacêutica participe dos painéis decisórios, até mesmo aqueles que simplesmente já tenham declarado um posicionamento intelectual sobre a questão em consideração.

É importante também levar em consideração que o processo de decisão daquilo que é doença e que não é doença pode ser muito mais rico quando a discussão não fica limitada apenas a médicos. A sociedade civil e representantes de tantas outras áreas do conhecimento, como as ciências sociais, são muito bem-vindos nesse debate.

*Ricardo Afonso Teixeira é doutor em neurologia pela Unicamp e neurologista do Instituto do Cérebro de Brasília


Correio Braziliense


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