Bolívia: crise econômica e institucional favorecem guinada à direita


Uma inflação acumulada de 25%, a mais alta em 17 anos; a escassez de alimentos; a taxa de desemprego em elevação (hoje em 3,9%); e a fuga de dólares, com o esgotamento das reservas internacionais, devem ditar o fim de uma era na Bolívia, durante as eleições presidenciais de hoje. O milionário Samuel Doria Medina, 66 anos, e o ex-presidente Jorge "Tuto" Quiroga, 65, ambos de inclinação ideológica de direita, disputam a preferência de 7,9 milhões de eleitores (ou 64,2% da população) entre os oito candidatos e buscam tirar proveito de um racha no Movimento ao Socialismo (MAS), o principal partido de esquerda.
Ambos devem voltar a se enfrentar no segundo turno, em 19 de outubro. O atual presidente Luis Arce Catacora e o seu antecessor, Evo Morales, têm trocado acusações publicamente. Os dois prometem uma ruptura com a política econômica do MAS e um plano de choque quase idêntico, marcado pela drástica redução dos gastos públicos e pelo desmonte progressivo dos subsídios milionários.
Em entrevista recente à agência France-Presse, Medina anunciou "uma nova etapa, em que o mais importante será recuperar a estabilidade econômica, para sair do estatismo e ter uma economia capitalista". Quiroga, por sua vez, avisou que promoverá uma "mudança sísmica", focada na redução do deficit fiscal, na redução do Estado, na privatização de todas as empresas públicas deficitárias e em transformações "radicais" na Constituição.
"Estamos em um momento de término de ciclo político, mas ainda não se inaugura um novo ciclo. A Bolívia enfrenta tempos de transição política, um tempo que prossegue com uma crise de lideranças", explicou ao Correio Marcelo Arequipa, doutor em ciência política e professor da Universidade Católica Boliviana San Pablo (em La Paz). Para o especialista, os bolivianos conduzirão às urnas a preocupação com a crise econômica, principalmente com a oferta de combustíveis subsidiados.
Arequipa admitiu que a disputa entre Arce e Morales desgastou muito a relação política dentro da esquerda. "Isso também começou a ser percebido como um problema que afetava o bolso dos bolivianos no consumo diário, porque o dólar começou a escassear e os preços aumentaram", comentou.
Cientista político e professor titular da Universidad Mayor de San Andrés (em La Paz), Franklin Pareja Aliaga disse à reportagem ser impossível determinar um favoritismo de Medina ou de Quiroga. "De fato, eles aparecem empatados. Em algumas pesquisas, aparece à frente Medina e, em outras, Quiroga. É importante destacar que, aparentemente, o eleitorado boliviano deseja uma circulação de poder. Basicamente, dois elementos conjugam-se nessa eleição: a fratura dentro do Movimento ao Socialismo (MAS) e a crise econômica, que golpeia com mais dureza os elementos mais pobres da população, os quais formam a base social do MAS", avaliou.
De acordo com Aliaga, os candidatos da ala conservadora são os que têm inspirado maior confiança para resolver a crise econômica, adotando medidas estruturais. "A população boliviana trabalha com a esperança de que a situação do país melhore depois das eleições", afirmou. Ele reconhece que as forças de esquerda boliviana estão muito desvalorizadas ante a opinião pública. "Esse cenário e o modelo econômico fracassado abrem oportunidade para o conservadorismo retornar ao poder."
Carlos Hugo Cordero Carraffa, cientista político da Universidade Católica Boliviana (em La Paz), lembrou que tanto Medina quanto Quiroga participaram de vários processos eleitorais da Bolívia. "Ambos se reivindicam como líderes democráticos e evitam ser qualificados como candidatos da direita. Quiroga foi um opositor, por muito tempo, ao governo de Evo Morales e aos governos de Cuba, Venezuela e Nicarágua", disse ao Correio.
Preocupações
Carraffa acredita que a inflação, a perda do poder de compra do salário, o desemprego e a ausência de investimentos do aparato estatal moldam as principais preocupações dos eleitores. "Sem investimentos, não existe redistribuição de renda. O clima de instabilidade gerou uma enorme falta de confiança na capacidade de gestão de Arce e de Morales. Várias instituições bolivianas perderam a credibilidade, como a Justiça, as Forças Armadas e a polícia. Vejo uma possibilidade de a eleição de hoje produzir uma mudança, uma reorientação das políticas públicas, com novos rostos, novos comportamentos e novas atitudes" previu.
O analista reconheceu que o alinhamento internacional do MAS provocou muita resistência, como a assinatura de contratos de lítio, hoje fortemente questionados. "Isso mostra um esgotamento do eleitorado boliviano em relação ao MAS. A Bolívia assiste a uma profunda crise partidária, envolvendo Arce e Morales", concluiu Carraffa.
Correio Braziliense
Crédito: Martin Bernetti/AFP